terça-feira, 19 de agosto de 2008

Cantar me enlouquece...



Cantar me enlouquece

Rabindranath Tagore

Quando me ordenas cantar,
parece que o meu coração vai arrebentar-se...
Pensei que poderia te pedir

a grinalda de flores que levas no pescoço...
Essa que ficou sempre na profundidade do meu ser...
A minha libertação...


Daqui por diante eu me expressarei em sussurros...
Cantar me enlouquece...
Quando me ordenas cantar,
parece que o meu coração vai arrebentar-se de orgulho.

Então contemplo a tua face e as lágrimas me vêm aos olhos.

Tudo o que é duro e dissonante em minha vida

se dissolve em única e doce  harmonia,
e a minha adoração abre as suas asas,
como um pássaro alegre voando sobre o mar.

Sei que tens prazer no meu canto.
Sei que posso chegar à tua presença apenas
como um cantor.

Com a ponta da asa imensamente
aberta do meu canto eu roço os teus pés,
que eu jamais poderia querer alcançar.

Embriagado pela alegria de cantar,
esqueço a mim mesmo e te chamo amigo,
tu que és o meu Senhor.


Pensei que poderia te pedir

a grinalda de flores que levas no pescoço,
mas não me atrevi.



Fiquei esperando pela manhã,
quando tivesses ido embora,
para encontrar pedaços dela no leito.


E fiquei na madrugada feito mendiga,
procurando uma ou duas pétalas caídas.

Coitada de mim, o que foi que encontrei?

O que me restou do teu amor?
Nem flor, nem perfume,

nem jarro de água perfumada...


Apenas a tua espada poderosa,
flamejante como chama
e pesada como raio na tempestade.


A luz jovem da manhã entra pela janela
e se derrama em teu leito.
O pássaro da manhã começa a cantar,
e me pergunta:
"Mulher, o que é que encontraste?"
Não, não foi uma flor,
nem perfume e nem jarro de água perfumada.

Encontrei apenas a tua espada poderosa.

Sento-me e fico cismando,

admirada com essa tua dádiva.
Não acho lugar onde escondê-la.
Tenho vergonha de usá-la, tão frágil sou,
e ela me fere quando eu a aperto contra o peito.
Mesmo assim, porém, eu levarei no meu coração
esse honroso fardo de dor,
que é a tua dádiva para mim.

Doravante nada mais temerei neste mundo,

e tu conquistarás a vitória em todas as minhas lutas.


Deste-me a morte por companheira,
e eu vou coroá-la com a minha vida.
A tua espada está comigo para cortar as minhas amarras,
e nada mais temerei neste mundo.

Doravante eu abandono todos os adornos fúteis.

Senhor do meu coração,
não vou mais ficar esperando

ou me desesperando pelos cantos,
e nunca mais vou ser tímida ou caprichosa.


Deste-me como ornamento a tua espada.
Não preciso mais dos enfeites de boneca.

Essa que ficou sempre na profundidade do meu ser,

no crepúsculo de vislumbres e percepções momentâneas;
essa que jamais retirou seus véus na luz da manhã,
essa irá ser a minha última oferenda a ti,
meu Deus, envolta na minha canção final.

As palavras a cortejam,

mas não conseguiram vencê-la,
e a persuasão inutilmente
estendeu para ela os seus braços ansiosos.

Vaguei de país em país,

conservando-a no íntimo do meu coração,
e ao redor dela a minha vida ergueu-se e caiu,
ao mesmo tempo forte e frágil.

Embora habite sozinha e afastada,

ela sempre reinou sobre todos os meus pensamentos e ações,
sobre todos os meus sonos e sonhos.

Muitos bateram à minha porta,
perguntaram por ela, e foram-se embora,

sem esperança.

Ninguém no mundo conseguiu vê-la face a face,

e ela continua em sua solidão,
à espera do teu reconhecimento.


A minha libertação, para mim,

não está na renúncia.
Sinto o abraço da liberdade em mil laços de prazer.


Daqui por diante eu me expressarei em sussurros...
...Gastei muitas e muitas horas

na luta entre o bem e o mal.


Mas agora o prazer
do meu companheiro de jogos nos dias vazios
é atrair o meu coração para o seu.

E eu não compreendo por que esse repentino convite
para não sei qual inútil inconsequência!

Cantar me enlouquece,

e se eu me desfizesse todo num vôo de canção,
nada me pesaria tanto...

Tradução de Ivo Storniolo




Música de Deva Premal e Minte